Sim, claro que muitos filmes brasileiros sofrem com questões estéticas, roteiros fracos e produção limitada. Mas reduzir tudo isso à ideia de que nosso cinema é “ruim” é, no mínimo, simplista. Afinal, quando estamos falando de cinema, estamos falando de algo altamente subjetivo. O que você acha incrível, eu posso achar terrível, e vice-versa. O conceito de “bom” ou “ruim” depende muito de quem assiste. Então, se o problema não é qualidade, o que é? A resposta está na falta de algo muito mais profundo e estruturado: uma indústria audiovisual sólida.
Agora, vamos pensar um pouco além: países como Estados Unidos, China, e Coreia do Sul não só produzem filmes que fazem sucesso global, mas têm por trás de suas produções uma engrenagem gigantesca que movimenta cultura, dinheiro e impacto social. Esses países possuem uma indústria auto suficiente de cinema. Eles têm os meios, a infraestrutura e o alcance para transformar um filme em um fenômeno mundial. E é essa estrutura industrial que o Brasil não tem. E isso, meu amigo, é o ponto central de todo o problema.
Aqui no Brasil, o problema vai muito além de simplesmente fazer filmes melhores. Até porque, sinceramente, nem a poderosa Hollywood é uma fábrica de obras-primas o tempo todo. A verdade é que eles produzem toneladas de filmes que a gente nem lembra que existem, mas o que realmente faz a diferença é o sistema distributivo que eles têm por trás. E isso, sim, é o que cria uma indústria audiovisual de sucesso.
Você pode até achar que eu vou entrar na polêmica da Lei Rouanet ou discutir o quanto de dinheiro público é investido na produção de filmes nacionais e como isso poderia estar impedindo o surgimento de um mercado mais competitivo. Sim, essas questões são importantes, e essa discussão tem o seu valor, mas, honestamente, é um pouco rasa.
A real é que o problema é muito mais profundo, porque, como diz o ditado: “No Brasil, o buraco é mais embaixo”. E é exatamente esse buraco que vamos explorar aqui. Esta é a primeira parte de uma série de artigos em que vamos analisar como outros países conseguiram estruturar indústrias audiovisuais robustas e entender por que o cinema brasileiro não se tornou uma indústria de verdade. E, para começar, precisamos focar em algo que considero essencial: a distribuição.
Em terra de Hollywood, distribuição é rei
Vamos começar por Hollywood, o sonho de todo cineasta, ator e roteirista. Não há como negar: os Estados Unidos são mestres em fazer seus filmes rodarem o mundo. Mas se você acha que o sucesso de Hollywood se resume apenas à qualidade dos filmes, como os blockbusters de efeitos especiais e super-heróis, você está enganado. O grande trunfo de Hollywood não é só fazer filmes que as pessoas querem ver. O segredo do sucesso está na distribuição massiva.
Além disso, havia incentivos fiscais que ajudavam a indústria a se estabelecer por lá. Mas nada disso teria funcionado sem a criação de uma rede de cinemas que cobria os Estados Unidos de costa a costa. Esse foi o grande golpe de mestre: garantir que os filmes tivessem onde ser exibidos.
Na década de 1930, durante a Grande Depressão e também no período logo após a Primeira Guerra Mundial, o governo americano começou a perceber que o cinema não era apenas uma forma de entretenimento, mas também uma maneira de revitalizar a economia.
E foi nesse contexto que surgiram políticas fiscais, isenções de impostos e parcerias público-privadas que ajudaram a expandir as redes de cinemas pelo país. O Plano de Recuperação Econômica de Roosevelt, por exemplo, financiou projetos de infraestrutura, incluindo a construção de cinemas. Isso permitiu que empresários locais construíssem salas de cinema em todo o país, não só nas grandes cidades, mas também em áreas rurais.
Hoje, a herança desse investimento histórico se reflete em números impressionantes: os Estados Unidos contam com 39 mil salas de cinema espalhadas pelo país. São 50 grandes redes de exibidores, como AMC Theatres, Regal Cinemas e Cinemark, além de mais de 30 grandes distribuidoras. Esse ecossistema robusto cria um mercado saudável, gera alto retorno financeiro e permite que cada vez mais investimentos sejam feitos em produções grandiosas.
Mas a grande jogada de Hollywood não parou na distribuição doméstica. Muito pelo contrário, eles entenderam cedo que o verdadeiro ouro estava no mercado global. No começo, o cinema americano ainda era bastante restrito ao público local.
Um exemplo disso é o filme “O Nascimento de uma Nação” (1915), que, apesar de ser altamente polêmico por seu conteúdo racista, foi um dos primeiros a ter sucesso internacional. Isso mostrou para os estúdios americanos que o retorno financeiro de um filme não precisava vir apenas da bilheteria doméstica.
Agora, pense um pouco: qual seria a possibilidade de um filme brasileiro fazer isso? Pois é. Aí começa a ficar claro o tamanho do nosso problema.
Além disso, para alcançar esse sucesso global, Hollywood teve que ajustar suas narrativas. Os filmes precisam ter temas universais, histórias que fossem entendidas por pessoas de diferentes culturas. Foi assim que se criou a tendência de filmes com mensagens simples e universais: a luta do bem contra o mal, superação pessoal, heróis invencíveis. Isso abriu ainda mais as portas para o sucesso global.
Não podemos esquecer que o governo dos Estados Unidos também soube usar o cinema como uma ferramenta de soft power. Durante a Segunda Guerra Mundial, filmes foram usados como propaganda para promover a democracia e os valores americanos, ajudando a solidificar a imagem dos EUA como a grande potência global. Hollywood se tornou, então, não só um lugar de fazer filmes, mas uma verdadeira máquina de influência cultural.
Portanto, o que começou como uma estratégia de distribuição doméstica bem-sucedida logo se transformou em uma força global. E é isso que continua colocando Hollywood no topo das bilheterias globais e, claro, no coração de cinéfilos ao redor do mundo até hoje.
A China construiu seu cinema de tijolo a tijolo
Agora, vamos virar os olhos para a China. Se Hollywood já estava estabelecida, a China resolveu seguir um caminho eficiente para criar sua própria força no cinema. E eles começaram pelo básico: construindo salas de cinema.
A China investe pesado na construção civil, que responde por 25-30% do PIB do país. Em 2020, eles produziram mais de 2,4 bilhões de toneladas de cimento, muito mais do que qualquer outro país. Com tanto material à disposição, a China passou a construir milhares de salas de cinema e, hoje, já ultrapassou os EUA, com mais de 70 mil salas de cinema.
Com essa expansão massiva, Hollywood rapidamente percebeu que o mercado chinês era uma mina de ouro. Filmes americanos começaram a ser adaptados para agradar o público local, com a inclusão de personagens chineses e representações positivas da cultura chinesa. Um exemplo foi o filme Warcraft (2016), que teve sua bilheteria mundial salva pelo sucesso que fez na China, arrecadando mais de 220 milhões de dólares só por lá.
Mas a China foi além. O governo começou a limitar a exibição de filmes estrangeiros e a promover as produções nacionais. Isso fortaleceu o cinema local, que começou a ganhar destaque. O filme “Wolf Warrior 2” é um exemplo disso, arrecadando mais de 874 milhões de dólares mundialmente.
E isso tudo só foi possível porque a China construiu uma rede de distribuição interna gigantesca, com mais de 70 mil salas espalhadas pelo país. Com essa infraestrutura, o cinema chinês não só floresceu no mercado doméstico, mas começou a conquistar espaço também no cenário internacional.
Mas e o Brasil?
Agora, voltando os olhos para o Brasil, temos mais de 200 milhões de habitantes e apenas 3.400 salas de cinema. Isso significa que há apenas uma sala para cada estádio de futebol lotado. Nos Estados Unidos, com 39 mil salas, seria como ter um cinema em cada bairro.
Na China, com 70 mil salas, a cobertura é tão ampla que cada grupo de moradores de um condomínio tem um cinema à disposição. Isso mostra que o brasileiro médio tem muito menos acesso ao cinema comparado aos cidadãos desses países, tornando o cinema um luxo inacessível para grande parte da nossa população.
Esse atraso na infraestrutura é o que faz o cinema brasileiro ser quase irrelevante no cenário global. Quanto mais salas, mais filmes podem ser exibidos, o que aumenta a chance de surgirem grandes produções.
Agora, imagine o seguinte: uma marca de roupas de alta qualidade que só tem uma loja em uma cidade pequena, enquanto outra marca, de qualidade inferior, está em várias lojas pelo país todo. Qual marca vai ter mais sucesso? Claro, a que tem maior alcance. O cinema brasileiro enfrenta o mesmo desafio: sem uma rede de distribuição adequada, nossos filmes dificilmente conseguem ser vistos, apreciados ou reconhecidos.
Além disso, a maior parte das nossas salas de cinema está concentrada em shoppings centers nas grandes cidades. Isso encarece os ingressos, já que os alugueis em shoppings são caros. E essa concentração geográfica limita o acesso da população de áreas periféricas e cidades menores.
A falta de investimento em infraestrutura cinematográfica fora dos grandes centros comerciais também dificulta a expansão do mercado e faz com que o cinema brasileiro dependa quase exclusivamente dos grandes lançamentos internacionais para sobreviver.
As redes exibidoras como Cinemark, Kinoplex e Cinépolis enfrentam altos custos operacionais, uma carga tributária elevada e, como se não bastasse, a concentração das salas em shoppings, com alugueis caros, dificulta ainda mais a expansão.
Estima-se que construir uma sala de cinema no Brasil pode custar até R$1,5 milhão, sem contar a burocracia enorme e a dificuldade de conseguir incentivos governamentais. Esse cenário desestimula novos investimentos, principalmente em áreas periféricas ou cidades menores do interior, onde o retorno financeiro é mais arriscado.
Estamos investindo no lugar errado
Mesmo com todos esses desafios, o governo brasileiro continua investindo grandes quantias em produção cinematográfica, enquanto a distribuição recebe uma fatia muito menor. Programas como o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) destinam grandes quantidades de dinheiro para a produção de filmes — em 2020, foram mais de R$ 500 milhões. Porém, apenas R$ 60 milhões foram destinados à expansão de salas de cinema pelo Programa Cinema Perto de Você. Ou seja, estamos produzindo filmes, mas não temos onde exibi-los.
Isso cria um desequilíbrio que prejudica o crescimento da indústria como um todo. Sem uma rede de distribuição adequada, os filmes nacionais têm dificuldade em encontrar público, tanto no mercado doméstico quanto no internacional. O Recine, por exemplo, busca aliviar a carga tributária na construção e modernização de cinemas, mas seu impacto é limitado pela burocracia e pela falta de ênfase na distribuição.
Agora imagine
O Brasil, nos últimos anos, gastou milhões de reais em produções que não conseguiram grandes retornos, nem localmente, nem internacionalmente. Estima-se que, com parte desses recursos, poderia ter sido investido na construção de novas salas de cinema. Para ilustrar: com os R$500 milhões investidos em filmes de baixo impacto, seria possível construir cerca de 330 novas salas (considerando um custo médio de R$1,5 milhão por sala).
Se olharmos para o exemplo da China e dos EUA, vemos que a expansão da rede de cinemas não só aumentou o consumo interno, mas também melhorou a distribuição de produções nacionais e internacionais.
Nos Estados Unidos, muitos filmes são de qualidade duvidosa, mas é na quantidade de produções que surgem as grandes jóias. Cerca de 10% dos filmes americanos brilham mundialmente. A mesma lógica poderia ser aplicada aqui: quanto mais salas tivermos, mas filmes fizermos, e mais chances teremos de encontrar nossas próprias grandes produções. É como plantar sementes: quanto mais você planta, maiores as chances de colher bons frutos.
Uma rede de cinemas bem distribuída pelo país poderia transformar a percepção global do cinema brasileiro. Teríamos a infraestrutura necessária para criar mais produções e, ao mesmo tempo, dar visibilidade a novos talentos.
Com mais espaço para exibidores independentes e pequenos produtores, o mercado se abriria para novas ideias e narrativas, aumentando as chances de criar produções que dialoguem com o público global. Essa expansão daria à indústria global um novo olhar sobre o Brasil, mudando inclusive a forma como o país é retratado nos filmes internacionais, dando maior relevância ao nosso cinema.
Se o Brasil quer ser visto como uma potência cinematográfica, não podemos continuar apenas produzindo filmes sem o espaço adequado para exibi-los. O investimento em novas salas de cinema seria mais do que uma oportunidade de crescimento econômico. Imagine um país onde novos cineastas, novas histórias e novas ideias tenham a chance de florescer. Sem a infraestrutura certa, estamos apenas brincando de fazer cinema.
Rafael Thorino é cineasta, produtor e proprietario da Thorin Filmes e da Studio Blum.