A cachaça é um produto histórico e cultural, com cerca de 500 anos de existência, sendo o destilado mais antigo das Américas. A produção açucareira e a “aguardente da terra” caminharam por longos séculos lado a lado, ambas a partir do conhecimento e tecnologia dos colonizadores portugueses, com a contribuição de indígenas e escravizados trazidos da África.
Os portugueses, acostumados com o destilado da uva, a bagaceira, custaram um pouco a apreciar o destilado de cana, mas, por outro lado, ela não tardou a cair no gosto desses senhores da Casa Grande e proprietários de engenho. Assim, ocorreu também com os indígenas, produtores do cauim, fermentado alcoólico da mandioca, e com os escravizados africanos, conhecedores do fermentado alcoólico da seiva do dendezeiro.


O enraizamento cultural da cachaça é inequívoco: ela envolveu a todos e conquistou amplos espaços de consumo durante a Colônia e o Império. Com a República, o gosto pelos produtos europeus foi maximizado, e ocorreu notória desqualificação da cachaça, mas ela prosseguiu reinante nos extratos populares.
A cachaça nasceu referida como “aguardente da terra” e “aguardente de cana”; esta última foi a denominação oficial até o século XX, ao lado de centenas de apelidos. Câmara Cascudo só encontrou registro escrito da palavra “cachaça”, no sentido específico de destilado de cana feito no Brasil, a partir do século XVIII. Desde então, o termo foi se disseminando por todo o território nacional, pelas casas, bares, ruas, música, literatura e discursos. A partir de meados do século XX, os rótulos do produto passaram a grafar a palavra “cachaça”.
Símbolo da cultura brasileira, a cachaça tornou-se protegida pelo Decreto 4.062, de 21 de dezembro de 2001, como Indicação Geográfica do Brasil, ou seja, a aguardente de cana exclusivamente produzida no território brasileiro e produto típico da nossa cultura e técnica.
Ao mesmo tempo em que a cachaça se enraíza culturalmente, ao longo da história, sendo amplamente produzida, apreciada e consumida, a ponto de se tornar protegida legalmente, o termo “cachaceiro” assume conotações negativas, ao se tornar sinônimo de “bêbado” e “arruaceiro”.
Questões semânticas importam mais do que por vezes supomos, pois expressam significados, valores e interesses que se desenham, enraízam e se transformam ao longo do tempo, tendo sempre por base a cultura constituída e constituinte. Os sentidos não são estáticos; por outro lado, não bastam vontades de alguns poucos (mesmo que sejam em alguns milhares) para se imporem novos significados. Os significados e sentidos requerem capilaridade em vastos e plenos domínios da cultura.
Na atualidade, em determinadas rodas de produtores e apreciadores de cachaça, é comum o uso positivo do termo “cachaceiro/a”, em sentido lúdico e em oposição ao preconceito que o termo carrega. Um exemplo desse viés positivo é a iniciativa da pioneira e icônica Academia da Cachaça, inaugurada em 1984, no bairro do Leblon, elegendo os “cachaceiros/as” de carteirinha. Contraponto interessante ao preconceito, em um contexto anunciado, a Academia da Cachaça merece todas as nossas homenagens, por seu pioneirismo e tratamento de excelência para com a cachaça. Nesse contexto, o termo cai como uma luva, sem tom doutrinário e panfletário; apenas um sentido lúdico entra em cena, entre os que compartilham a apreciação dessa finíssima bebida nacional.

Extrapolar, entretanto, o uso do vocábulo “cachaceiro/a” para segmentos muito amplos da sociedade seria demasiadamente impositivo. Além do preconceito enraizado, há percepções e sentimentos muito variados. Em muitas camadas da sociedade, a cachaça não é ainda identificada como bebida de fina qualidade, privilegiando-se outras bebidas destiladas como o whisky. Há famílias que carregam dores com problemas de alcoolismo causados por diferentes bebidas, mas o rótulo que sempre recai é o de “cachaceiro/a”. Somam-se grupos religiosos que condenam o álcool. São demasiados e intensos os sentidos ideológicos e preconceituosos que a palavra “cachaceiro/a” evoca.
Pelo fato de o termo “cachaceiro” não soar nada positivo para majoritários segmentos da sociedade, ele acaba por reforçar sentidos negativos, marcados por preconceitos e visões distorcidas em relação à cachaça. O vocábulo carrega tantos sentidos preconceituosos e pejorativos que só serviria para persistirem tentativas de rebaixar a categoria cachaça e discriminar pessoas.
A cachaça vem conquistando espaços relevantes no universo dos destilados de qualidade. Lojas de bebidas finas, bares e restaurantes de elevado padrão já manifestam segurança quanto à qualidade e às valorizadas características sensoriais da cachaça. Bem como, nos botecos, a cachaça prossegue apreciada, eternizada culturalmente no gosto popular.

Já o termo “cachaceiro”, desassociado do sinônimo de “bêbado”, não ecoa de forma aceitável para todos. Historicamente, quem produz cachaça é o mestre alambiqueiro/a, e na atualidade o termo apreciador/a da cachaça ecoa envolvente, pois delicadamente coloca em destaque as qualidades sensoriais da bebida e o consumo responsável.
Propugnar o uso ampliado do termo “cachaceiro” pode afastar boa parte do público da experiência positiva com a cachaça e reforçar preconceitos contra pessoas, políticos e personalidades que apreciam cachaça. Ao se manifestar como apreciador/apreciadora de cachaça, cada um de nós ajuda a afastar a pecha terrível do significado dominante do termo “cachaceiro”, um rótulo nefasto, em vez de edificante, como se gostaria que fosse.
Termos servem exatamente para trazer à tona significados de maior exatidão, indicando as especificidades e nuances que se quer imprimir e comunicar com clareza, tais como: mestre alambiqueiro, mestre de adega, cachacista, apreciador de cachaça (no sentido genérico de gostar do produto), historiador da cachaça, especialista em produção de cachaça, consultor de produção de cachaça, sommelier de cachaça.
Como produtora, apreciadora e representante setorial da cachaça, é oportuno destacar que o segmento da cachaça de qualidade é crescente. Aos produtores e representantes do setor compete a realização de um trabalho minucioso de comunicação, para ressaltar a cachaça como bebida gastronômica de elevado padrão sensorial. E, claro, em ambientes que valorizam a nossa experiência de apreciadores de cachaça.
Katia Alves Espírito Santo