Especialistas da área médica observam com preocupação um fenômeno que ocorre no Brasil desde o início da última década: as vendas de zolpidem – um potente remédio para dormir – crescem em ritmo acelerado. Entre 2012 e 2021, o número de caixas comercializadas subiu 676%, segundo dados obtidos com exclusividade pelo R7.
Números da CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), enviados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), evidenciam sucessivos aumentos do consumo entre 2011 e 2020, ano em que houve um pico de vendas: 23,3 milhões de caixas (veja gráfico abaixo).
Entre janeiro e junho deste ano, 10,6 milhões de caixas do remédio foram comercializadas — mais da metade (55,6%) do total de 2021. A média de caixas vendidas por mês em 2020 foi de 1,94 milhão; em 2021, 1,58 milhão; e no primeiro semestre deste ano, 1,76 milhão, o segundo maior número já registrado.
Para efeito de comparação, a média mensal de caixas dispensadas nas farmácias entre 2012 e 2021 foi de 902,5 mil.
O zolpidem é um remédio da classe dos hipnóticos e tem a venda autorizada no Brasil desde 2007, mas começou a se popularizar a partir de 2011, ano em que 1,7 milhão de caixas haviam sido vendidas. No ano seguinte, houve uma alta de 41,7%, chegando a 2,4 milhões.
Porém, o grande salto ocorreu de 2016 para 2017, com aumento de 55,2%, atingindo a marca de 10,5 milhões de caixas.
A neurologista Dalva Poyares, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e integrante do corpo clínico do Instituto do Sono, manifesta preocupação com o crescimento ano após ano das vendas e considera isso “um fenômeno local no Brasil”.
“O que chama atenção não é apenas o número absoluto, é o período de crescimento, tudo isso progrediu rápido. Nos Estados Unidos, já em 2010, existia essa consciência. Aqui não existia esse problema ainda. Quando existia só a Sanofi [com registro], ela é muito discreta, e o Stilnox [medicamento de referência] nunca foi tão popular. Aí começaram a vir muitos genéricos e similares, uma enxurrada de propaganda”, explica.
Para Dalva, o surgimento de versões sublinguais do zolpidem pode estar por trás da popularização do medicamento. “Ele faz efeito mais rápido e vicia mais rápido”, diz.
Dos 50 registros de hemitartarato de zolpidem ativos na Anvisa, oito são de versões sublinguais. Há autorização para comercialização de caixas com até 90 comprimidos, embora as farmácias vendam embalagens que variam de 20 a 60 comprimidos.
O primeiro zolpidem sublingual, o Patz, obteve registro em 2011. Ele foi o único no mercado até 2019, quando um segundo laboratório conseguiu autorização para também vender essa apresentação.
Mas a explosão de vendas que se observou em 2020 pode ter relação também com a aprovação de outros cinco medicamentos sublinguais – o mais recente foi liberado em janeiro deste ano. A especialista também aponta o marketing agressivo dos laboratórios para convencer médicos de praticamente todas as especialidades a prescreverem o zolpidem.
“A questão é que existe uma difusão muito grande, uma propaganda muito grande para os médicos de que isso é seguro e que eles podem prescrever à vontade. Os médicos não especialistas compraram a ideia”, afirma.
A presidente da Regional Centro-Oeste da ABS (Associação Brasileira do Sono), a neurologista Giuliana Macedo Mendes, entende que há no país “prescrições exageradas” impulsionadas pela falta de conhecimento de médicos sobre o risco de dependência do zolpidem.
“Um clínico que acabou a faculdade e vai trabalhar no postinho quer ajudar o paciente a pegar no sono, só que ele não tem essa visão ampla do que é um transtorno de insônia. Aí passa a medicação para induzir ao sono, só que essa medicação começa a causar uma dependência física e psicológica, que é o caso do zolpidem”, ressalta.
Antes do zolpidem, muitas pessoas que procuravam remédios para dormir saíam dos consultórios médicos com receitas de benzodiazepínicos, que são destinados ao controle da ansiedade, usados sobretudo em momentos de crise.
O grande problema dessa categoria de medicamento – que inclui o clonazepam (Rivotril), o alprazolam (Frontal) e o diazepam (Valium) – é que eles causam dependência, por isso têm embalagens com tarjas pretas.
A sonolência provocada pelos benzodiazepínicos é um efeito colateral que pode ajudar a dormir, mas com o tempo, isso tende a se perder, levando o paciente a aumentar a dose.
“O Rivotril é um dos remédios que provoca mais dependência, mais efeitos colaterais, como problema de memória. Com o lançamento do zolpidem, demorou cerca de dez anos para os médicos prescreverem menos Rivotril e mais zolpidem, mas achavam que era uma droga que não tinha efeito colateral a longo prazo, e tem. Se você usa zolpidem por mais de seis meses, um ano, dois anos, você está sujeito a fator de risco, na cognição, na memória. […] Já está comprovado que aumenta o risco de demência”, destaca Giuliana.
Os chamados Z-hipnóticos, como o zolpidem, surgiram no mercado global na década de 1990 com um mecanismo diferente de ação em comparação com os benzodiazepínicos, pois possuem propriedades ansiolíticas fracas.
Acreditou-se durante muitos anos que estes não causavam dependência e tinham menor efeito rebote, algo que já se mostrou falso. “Eu já atendi pessoas que tinham ingerido 50 comprimidos em uma única noite. A tolerância é um dos primeiros sinais de dependência – um dos sinais é começar a acordar alerta, no meio da noite, como se fosse amanhecendo. Aí a pessoa toma outro. Então, eram dois no início da noite, um no meio da noite… de repente está em 50”, conta Dalva.
A médica do Instituto do Sono diz que muitos pacientes estão tendo de ser internados em hospitais psiquiátricos para tratar a dependência em zolpidem.
A possibilidade de o zolpidem não causar tolerância e dependência refletiu na forma como ele é prescrito. Até 10 mg (a maior parte do consumo), é exigida receita branca em duas vias.
A exceção é o de 12,5 mg, que requer receita tipo B (azul), a mesma dos benzodiazepínicos. Estes, porém, representaram menos de 1,5% de todas as apresentações vendidas no primeiro semestre deste ano.